Victoria Kelly Pires, 18, tinha estudado ao longo de todo o ano de 2020 de olho no Enem (Exame Nacional do Ensino Médio). Diferentemente de muitos jovens que não conseguiram acompanhar os estudos por falta de acesso à internet ao longo de 2020, ela não teve problemas de conexão e se preparava para as provas com a ajuda de aulas de cursinhos online.
Mas, no domingo (17/01), depois de uma noite sem dormir, Victoria decidiu que ficaria em casa e não prestaria a primeira prova do Enem.
"Decidi ontem (domingo) mesmo. Eu me preparei para essa prova o ano inteiro, mas pensei na minha família e na minha saúde - eu tenho asma. Conversei com meus pais e tomei a decisão de desistir. Foi difícil, mas não me arrependo", diz ela à BBC News Brasil.
Victoria, que mora em Macaé (RJ) e pretende cursar Biomedicina, vai continuar estudando, a despeito do "ano perdido". Pensa em tentar o Enem novamente na edição 2021.
Aos amigos nas redes sociais que decidiram fazer a prova, ela desejou sucesso e segurança e explicou os motivos de sua desistência: "Não poderei fazer uma faculdade se estiver morta".
O medo de prestar o Enem em meio a um novo pico de casos e mortes por covid-19 parece ter se refletido em uma abstenção recorde: compareceram à prova do dia 17 menos da metade (ou 48,5%) dos 5,5 milhões de inscritos no Enem impresso, segundo dados preliminares do Inep, órgão do Ministério da Educação que gerencia o exame.
Ou seja, 2.842.332 pessoas inscritas acabaram não participando da prova.
Esse grupo inclui, além dos desistentes, cerca de 160,5 mil alunos do Estado do Amazonas e outros quase 4 mil alunos das cidades de Espigão D'Oeste e Rolim de Moura (RO), onde a prova não foi realizada no domingo, além de cerca de 10 mil estudantes que afirmaram estar com doenças infectocontagiosas, como a covid-19. (Esses grupos estão entre os alunos que poderão participar da reaplicação da prova, em 23 e 24 de fevereiro; veja mais detalhes abaixo).
O Enem estava inicialmente marcado para novembro de 2020, mas foi adiado para janeiro por conta da pandemia e, até a véspera da prova, foi alvo de pressões e ações judiciais pedindo um novo adiamento.
O ministro da Educação, Milton Ribeiro, disse ter se surpreendido pela grande ausência de participantes - na edição anterior, o índice de abstenção havia sido de 23%, contra 51,5% desta -, mas defendeu a decisão de manter a data dos exames.
"Tivemos uma abstenção grande, em parte pela questão do medo da contaminação e em parte por um trabalho de mídia muito grande contra o Enem, de maneira muito injusta - não foi feito o mesmo trabalho contra a Fuvest (vestibular da USP que teve a primeira fase em 10 de janeiro)", afirmou Ribeiro em entrevista coletiva.
"O Enem no meio da pandemia foi vitorioso, para não atrasar mais a vida de milhões de estudantes. Não atrasamos a educação brasileira em mais um semestre. (...) Qualificamos como um sucesso porque no meio de uma crise conseguimos mobilizar milhões de pessoas de uma maneira segura. Se disséssemos que não teríamos o Enem neste ano, seria uma derrota da educação."
O ministro também afirmou que o Inep tomou medidas de segurança para evitar a propagação do coronavírus durante a prova e que o público do Enem já tem conhecimento das medidas preventivas à covid-19. "Estamos falando de jovens adultos, que sabem se proteger."
O presidente do Inep, Alexandre Lopes, lembrou que o Enem 2020 teve um recorde de não pagantes (ou seja, de alunos que foram isentos da taxa de matrícula no exame), o que pode ter contribuído para a abstenção maior.
"São informações que vamos apurar no balanço total", afirmou, destacando que outros vestibulares também tiveram muitos ausentes. "O aumento das abstenções não são uma exclusividade do Enem."
Para muitos alunos, porém, o Enem 2020 acabou sendo uma escolha entre "a saúde mental e a saúde física", opina Vinícius de Andrade, criador do projeto Salvaguarda, que ajuda jovens de escolas públicas a ingressar no ensino superior.
"Os alunos de escolas públicas já passam por tantas dificuldades e, como se não bastasse, se depararam com o dilema de fazer o exame e (buscar) o sonho de ingressar em uma universidade pública ou cuidar de sua saúde, com medo de pegar covid-19", explica Andrade.
Embora tenha se deparado com abstenções de todo o tipo - desde alunos que viajaram 60km para prestar o Enem mas se esqueceram do documento de identidade até quem errou o horário da prova -, ele acha que a maioria dos faltantes decidiu ficar em casa por uma mistura de dois fatores: medo da pandemia e sensação de despreparo para o exame.
É o caso de Juliana Sara Lima dos Santos, 19, que desistiu de prestar a prova em Cascavel (PR), por temer colocar a mãe (que tem pressão alta) em risco e porque não se sentiu confiante, depois de um ano inteiro estudando por videoaulas.
"Aqui na minha cidade os casos estão elevados, então fiquei muito insegura em ir fazer em meio a tantas pessoas", conta a estudante, que sonha em cursar Medicina.
"Na frente dos colégios ou faculdades vi umas imagens de reportagens com muita aglomeração de pessoas. Por mais que na sala de aula houvesse distanciamento, em frente às escolas estava bem movimentado."
Agora, Juliana vai focar nos vestibulares de universidades paranaenses e seguir se preparando para o Enem 2021. "Conhecimento nunca é perdido: não fiz esse Enem, (mas) tem o próximo e vou levar toda a bagagem que adquiri até aqui. Em parte, estou aliviada (em não ter prestado) por causa da pandemia e, em outra, estou preocupada com o futuro, com as incertezas."
Segundo Vinícius de Andrade, o mero ato de se inscrever no Enem já é, para muitos alunos de escolas públicas, uma demonstração de "coragem e do sonho por um futuro diferente".
"Porque o exame é distante deles, e eles não têm muitos exemplos de pessoas (próximas) na universidade. O que desejo é que eles não desistam, para que possam ocupar espaços onde sua voz vai ser ouvida. Eles precisam se sentir aliviados de que isso (perder a prova) não é o fim de nada. Eles estão no meio do percurso", diz.
"Agora, é tentar ser frio, analítico e olhar o quadro geral, sem se ver diante de um muro de altura sem fim. (Recomendo) olhar para outros vestibulares seriados, vestibulares de universidades em seus Estados e tentar manter o ânimo para as próximas provas."
Em Jardinópolis, interior de São Paulo, Katharine Abdala, 18, conta que já passa normalmente "um perrengue danado com a bronquite aguda mesmo sem a covid-19".
"Já preciso usar a bombinha, porque a bronquite vai e volta a qualquer momento. Imagina então se eu pegar o vírus", diz à reportagem. "Pensei: 'vai estar todo mundo de máscara no Enem'. Mas era muita gente prestando, e aqui ninguém se cuida, porque acham que não precisa se preocupar por ser uma cidade pequena."
Katharine já cursa o ensino técnico de Farmácia e pretende agora continuar os mesmos estudos no ensino superior. Mas também acabou optando por não fazer o Enem.
"Eu não tive isenção da inscrição: tinha pago (o valor de R$ 85), então foi bem difícil a decisão. Mas no dia eu decidi não ir. Hoje também foi difícil ver que todo mundo fez a prova e está tudo bem, mas coloquei na minha cabeça que vou ter outras oportunidades", diz ela.
A jovem teve um pequeno alento nesta segunda-feira (18/1), ao receber a notícia que passou para a segunda fase de um processo seletivo online para bolsas de estudo em uma universidade privada. "Deu uma aliviada, mas o Enem ainda está na minha cabeça."
Segundo o Inep, uma reaplicação da prova do Enem ocorrerá nos dias 23 e 24 de fevereiro, para os seguintes grupos de alunos:
- Cerca de 8,1 mil alunos que tiveram sintomas de covid-19 (ou outras doenças infectocontagiosas, como sarampo), enviaram seus laudos médicos ao Inep e tiveram o pedido de reaplicação aceito.
Outros 1,9 mil pedidos não foram aceitos pelo Inep - em alguns casos, por terem enviado laudos ilegíveis ou em fotos desfocadas. Esses - bem como outros alunos que nesta semana tiverem sintomas de covid-19 e precisarem se ausentar da segunda prova, no dia 24 - podem reenviar seus laudos médicos a partir desta segunda-feira (18/01) pela Página do Participante do Enem.
- Alunos do Estado do Amazonas e das cidades de Espigão D'Oeste e Rolim de Moura, em Rondônia. Nesses locais, a prova do último domingo não foi realizada por conta do avanço do novo coronavírus, e os cerca de 165 mil alunos afetados poderão fazer a reaplicação em 23 e 24 de fevereiro.
- Alunos afetados por problemas logísticos. É o caso dos participantes que afirmaram terem sido impedidos de fazer a prova de domingo porque as salas de aula estavam com capacidade máxima. Segundo Alexandre Lopes,do Inep, essa situação foi identificada até agora em 11 salas em cidades do Sul do país (Florianópolis, Curitiba, Londrina, Pelotas, Caxias do Sul e Canoas), de um universo de 14.447 salas de Enem em todo o país.
"Nenhum aluno será prejudicado. Quem se sentir prejudicado, em qualquer lugar do Brasil, poderá solicitar a reaplicação da prova, a partir do dia 25 de janeiro. Daí olhamos a ata da sala (do aluno queixoso) para entender o que aconteceu", afirmou Lopes.
Alunos cujas escolas tiveram problemas de infraestrutura - caso de três escolas na Bahia onde faltou energia elétrica durante o Enem - também poderão pedir a reaplicação da prova.
Vale lembrar que a reaplicação não é válida para alunos que se atrasaram no domingo, nem para os que ficaram com medo de se infectar pelo coronavírus, destaca o Inep.
Fonte: BBC News Brasil