A pandemia de covid-19 agravou as desigualdades que afetam estudantes vulneráveis e se refletem na reprovação, distorção idade-série e abandono escolar.
A conclusão é do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) e do Instituto Claro, que divulgaram hoje (28), no Rio de Janeiro, pesquisa com dados indicando que chega a 5,5 milhões o número de crianças e adolescentes que estavam sem atividades escolares ou fora da escola em outubro do ano passado, no Brasil. Meninos, negros, indígenas, estudantes com deficiência e moradores de áreas rurais ou do Norte e Nordeste do país são as principais vítimas do problema.
O estudo analisa dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (Pnad), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), e indica que 1,38 milhão de estudantes de 6 a 17 anos, ou 3,8% do total, não participaram de aulas presenciais ou remotas em outubro de 2020. O percentual é quase duas vezes maior que a média de 2019: 2%.
Entre os que disseram ter frequentado as aulas, ao menos remotamente, 4,12 milhões relataram que não tiveram acesso às atividades escolares. "Assim, estima-se que mais de 5,5 milhões de crianças e adolescentes tiveram seu direito à educação negado em 2020", afirma a pesquisa.
Os dados mostram grandes disparidades entre estados. Enquanto Acre (10%), Amapá (12%) e Roraima (15%) tiveram percentuais de dois dígitos para crianças e adolescentes de 6 a 17 anos que não frequentavam a escola, nem remotamente em outubro, a média no país era perto de 4%. Minas Gerais e Sergipe tiveram o menor percentual: 2%. As desigualdades aparecem também quando considerada a raça dos estudantes, com desvantagem para negros e indígenas em relação a brancos e amarelos.
O chefe de educação do Unicef no Brasil, Ítalo Dutra, apresentou o estudo hoje (28) e alertou que as crianças que deixaram de ter aulas presenciais e não participaram de atividades remotas perderam o vínculo com a escola e precisam ser trazidas de volta ao ambiente escolar.
"Precisamos ir atrás desses 5,5 milhões de crianças e adolescentes e garantir que tenham acesso à escola já, imediatamente. E, nesse contexto, trabalhar para que a gente faça uma reabertura segura das escolas, onde as condições epidemiológicas permitirem, abrindo e fechando se houver piora ou melhora, mas a gente não pode deixar que milhões de crianças e adolescentes no país não tenham acesso à educação", disse ele, que defendeu também um reconhecimento e enfrentamento das desigualdades.
A análise também caracteriza o cenário de desigualdade anterior à pandemia. Em 2019, segundo o Censo Escolar, seis milhões de estudantes estavam pelo menos dois anos atrasados na escola, o que configura a situação de distorção idade-série. Além disso, 2,1 milhões de estudantes foram reprovados no Brasil naquele ano, e mais de 620 mil abandonaram a escola.
Os números, apontam os pesquisadores, são sintomas da cultura do fracasso escolar, que torna aceitável que um perfil específico de estudantes passe pela escola sem aprender, sofrendo sucessivas reprovações até desistir.
O estudo explica que essa naturalização se dá culpando os próprios estudantes e suas famílias, professores ou o sistema educacional, alimentando a ideia de que não há nada a ser feito.
"É importante assumir que o abandono escolar ultrapassa as escolhas individuais, sobre as quais não se pode incidir. A reprovação e o abandono são desafios de toda a sociedade, o que inclui a escola, seus profissionais, gestores da educação, estudantes e suas famílias", alerta a pesquisa.
Se a reprovação escolar atingiu 7,6% dos alunos matriculados em 2019, esse percentual passa de 10% se consideradas as populações preta e indígena, enquanto na população branca não chega a 6%. Os estudantes com deficiência foram ainda mais afetados, com 11,5% de reprovação em 2019.
"A persistência de altas taxas de reprovação é um desafio nacional. As reprovações em cada estado e cada município incidem mais sobre as populações preta e indígena e também sobre os meninos e sobre as pessoas com deficiência", analisa o levantamento, que considera a reprovação um "poderoso indutor" do abandono escolar, que também está relacionado a fatores externos, como a gravidez na adolescência e a incompatibilidade das atividades escolares com a necessidade de trabalhar ou realizar afazeres domésticos, por exemplo.
"A escola precisa acolher, ensinar e contribuir para que as(os) estudantes possam atribuir sentidos às aprendizagens, sendo parte da construção de seus projetos de vida no presente, durante a escolarização, e também na imaginação e no desejo dos planos de futuro", disse.
Entre os mais de 620 mil alunos que abandonaram a escola em 2019, 333 mil saíram no ensino médio. No Norte do país, chega a quase 10% a taxa de abandono escolar no ensino médio, contra 5,5% na média do Brasil e 4,1% no Sudeste.
O abandono escolar, considerando o ensino médio e o fundamental nas escolas estaduais e municipais, é mais grave entre a população indígena, em que chega a 5,3%, e atinge 5,7% se analisada apenas a população que vive em terras indígenas. Os valores representam mais que o dobro da média nacional de 2,3%.
Pretos (2,9%) e pardos (2,6%) também apresentam números maiores que a média, enquanto brancos chegam ao percentual de 1,4%. Meninos (2,4%), estudantes com deficiência (2,7%), moradores de assentamentos (3%) e de quilombos (2,8%) são outros grupos acima da média nacional.
O resultado de sucessivas reprovações, abandonos e tentativas de retorno à escola é a distorção idade-série, que chega a 21,1% dos estudantes nas escolas públicas municipais e estaduais. A distorção afeta 46,8% dos estudantes com deficiência, 40,2% dos indígenas, 29,6% dos pretos, 26,4% dos estudantes de áreas rurais e 24,9% dos meninos.
"Sem o reconhecimento de que a melhoria dos resultados escolares, entendidos como a permanência e o sucesso dos estudantes em suas trajetórias, passa pela transformação das relações, pela inclusão, pelo combate ao racismo, ao sexismo, ao capacitismo, ao classismo, à LGBTfobia (lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros), não haverá mudança nos patamares atuais", indica o estudo.
Para a reversão da cultura do fracasso escolar, o Unicef propõe, entre outras medidas, reconhecer as diversas formas de desigualdades que afetam os estudantes, abrir mais espaço para que se engajem e sejam ouvidos pelas escolas e buscar novas soluções para a avaliar o processo de aprendizagem.
Diretor de Pesquisa e Avaliação do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), Romualdo Portela lembra que questões culturais mudam lentamente.
"As mudanças de cultura são as mais difíceis de serem processadas, porque não se muda isso pela lei ou administrativamente. Você tem que conseguir convencer as pessoas", afirma. "A sociedade pensa que a escola boa é a escola que reprova muito, e isso tem efeitos sistêmicos", finaliza.
Fonte: Agência Brasil